Todos os dias quando acordava, ainda na cama de olhos fechados, percorria todo corpo com as mãos. Buscava os relevos, os pedaços de carne sem pele, os sulcos feitos a unha na noite anterior.
Assim que encontrava um deles, saltava da cama eufórica, corria para frente do espelho para ver a cor e admirar o novo hematoma.
Ela se deleitava com a imagem de seu corpo luzindo enormes marcas roxas e vermelhas. Sorria para si no espelho e se preparava para a melhor parte do dia, o banho.
A água tinha que ser gelada e o chuveiro aberto no máximo para que as gotas de água caíssem com força fazendo arder cada centímetro sem pele de seu corpo. Ela gemia durante o banho. Era como se estivesse fazendo amor e gozando longamente.
Nessas manhãs, ela experimentava um gozo único. Um gozo medieval que a fazia sentir-se como uma princesa encastelada, que escondida na torre mais alta, jogava com os amigos mais fiéis os jogos proibidos na corte.
Secava-se com extrema delicadeza. Pressionando e soltando a toalha por cada pedacinho do corpo, tendo o cuidado de não esfregar os ferimentos e esfolá-los. Queria-os originais.
Depois de seca colocava-se novamente em frente ao espelho, e tal qual uma mãe, que caça piolhos na cabeça de um filho, buscava cada marca e a cobria meticulosamente com uma camada de pomada. Quanto antes sarassem, poderia entregar-se novamente a uma noite de amor selvagem.
Vera vestia-se com a preocupação de ocultar os hematomas. Camisas longas, calças compridas e lenços eram seu uniforme. Quase nenhum centímetro de pele á mostra.
No trabalho passava o dia sentada, era uma jornalista sem ambições, produzia o clipping de uma multinacional há anos. Mas isso não fazia a menor importância, a única satisfação era o dor.
Movia-se na cadeira, levantava todo tempo. Café, xerox, água. Tudo era motivo para mover-se e sentir a dor, espalhada por todo corpo. A única sensação que a interessava era essa, a dor. Era a única coisa que tinha.
A noite ela se deita, após mais um dia de delírios e nada mais pode satisfazê-la. Abraçada pela dor, adormece. Um sono sintético, sem sonhos, pois não há nada além da dor em sua mente, nada além da dor em seu corpo. Nada além da dor á esperar.
Ás duas da manhã batem à porta. <Senhora Vera estou entrando> sussurra a enfermeira ao entrar no quarto 202 do hospital de queimados da zona sul. A paciente Vera-35807 dorme sob o efeito dos pesados sedativos.
Enquanto realiza o penoso procedimento de trocar as gazes que envolvem todo corpo da paciente, a enfermeira nota que Vera sorri.
Assustada, a enfermeira fixa por um momento o olhar no semblante de prazer da moribunda e sente-se incomodada. Num misto de repulsa e pena, balança a cabeça e segue realizando o doloroso procedimento de limpeza dos ferimentos causados pelo fogo. A paciente, sem abrir os olhos ou mover-se, sorri, seu rosto se enche de prazer, enquanto a enfermeira se benze e finaliza seu serviço.
A metafísica da dor não é ensinada aos profissionais da saúde… Eles não sabem que dentro de um hospital, a imaginação salva mais que qualquer medicina.